Uma questão bastante pertinente na teologia, ou, stricto sensu, na antropologia teológica, é a da constituição natural do homem. A formação da natureza humana é, assim, discutida a partir das Escrituras, e procura-se estabelecer, em termos de substância, qual ou quais são as categorias de elementos passíveis de serem identificados no antropos.
Neste ponto, costuma haver uma divisão de pensamentos dentro da tradição cristã. Por um lado, há aqueles que defendem, a partir da Bíblia, uma visão dicotômica do homem (dicotomia: "cortado em dois") postulando que o homem é um ser constituído de um elemento material e de um elemento imaterial. Por outro, há aqueles que afirmam uma visão tricotômica do homem (tricotomia: "cortado em três") pensando ser esta a perspectiva mais correta à luz da Escritura. O propósito deste artigo é elaborar uma breve defesa da dicotomia como a visão antropológica verdadeira e, ao mesmo tempo, refutar a tricotomia como uma perspectiva pagã acerca do homem.
Para começar, pode-se dizer que a aparente dificuldade em se fixar um consenso sobre o tema deve-se ao fato de a Escritura empregar diferentes termos para designar uma parte imaterial no homem. A Bíblia fala tanto em "alma" quanto em "espírito" e seus respectivos termos originais no hebraico e no grego, e a presença de mais de uma palavra apontando para o aspecto imaterial no ser humano torna-se, então, o epicentro desta problemática. O argumento tricotomista, resumido, é o de que, uma vez que a Bíblia utiliza palavras diferentes para se referir ao aspecto imaterial na constituição da natureza humana, então esta mesma faceta imaterial deve ser composta, ou seja, o homem deve ter uma alma e um espírito, além do corpo. A conclusão é que o homem deve ser um ente tripartido ou tricotômico.
No entanto, apesar de a Bíblia empregar palavras distintas para se referir ao imaterial na natureza humana, ela o faz usando os termos "alma" e "espírito" um pelo outro em permuta recíproca [1]. E isto é deveras evidente na Escritura. Basta olharmos, por exemplo, para Gênesis 35.18, que diz: "E aconteceu que, saindo-se-lhe a alma (porque morreu), chamou-lhe Benoni; mas seu pai chamou-lhe Benjamim", e Atos 7.59: "E apedrejaram a Estêvão que em invocação dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito". O primeiro verso diz que quando o homem morre, sua alma sai de seu corpo, e o outro diz que é o espírito que se esvai do corpo humano no momento da morte. Mas qual dos dois elementos realmente sai do corpo no momento da morte, a alma ou o espírito? Simples, não existem dois elementos, mas somente um. Este único elemento imaterial presente na natureza humana é, às vezes, chamado de "alma" e, às vezes, de "espírito", na Palavra de Deus. São termos diferentes para designar exatamente o mesmo elemento! E, evidentemente, isto nos é mostrado na totalidade da Escritura. Compare 1Rs 17.21 com o Salmo 31.5, por exemplo; contraste Ec 12.7 com 1Co 5.3, 5, como outro exemplo.
Enfim, as referências são inúmeras, mas meu propósito não é ser exaustivo. Todas estas referências mostram que a Bíblia não distingue entre alma e espírito como duas substâncias distintas.
Em adição, ao observarmos o relato da criação do homem em Gênesis 1-2, de maneira alguma podemos constatar, nem mesmo remotamente, a existência de uma tricotomia no antropos. A Bíblia é muito clara: Deus fez o homem e soprou-lhe nas narinas o fôlego de vida, de modo que, a partir desta ação, o homem passa a viver. Só há dois elementos aqui: o material e o imaterial.
E, finalmente, há o argumento de que caso a existência de palavras distintas para mostrar o aspecto imaterial no homem deva ser critério para o estabelecimento de uma tricotomia, então por que o mesmo critério não é aplicado em relação ao corpo humano para postular a ideia de que o homem, na verdade, possui diversos elementos materiais? Afinal, a Bíblia utiliza diversas palavras para se referir ao material no homem: a Bíblia fala em "corpo" (Mt 6.22), em "vaso" (2Co 4.7) e em "templo" (1Co 6.19). Ora, se diferentes palavras significam sempre substâncias diferentes, então por que não adotarmos o ensino de que o homem não possui apenas um corpo, mas também um vaso e um templo? Esta ideia, como podemos ver, apesar de ridícula, expõe precisamente o argumento hermenêutico dos tricotomistas. Mas sabemos que o homem não possui diversos elementos materiais da mesma maneira que não possui diversos elementos imateriais. O homem não é corpo, alma e espírito; ele é material (sendo o material designado por diferentes palavras, conforme a circunstância e a ênfase que se quer dar) e imaterial (sendo o imaterial tratado do mesmíssimo modo que o material, ou seja, pelo emprego de palavras distintas conforme o ângulo que o autor sacro, sob o sopro divino, intentou expôr).
Mas de onde, então, advém a doutrina da tricotomia? Certamente a tricotomia não vem da Escritura, como tenho mostrado. Com efeito, este ensino é oriundo da filosofia grega.
Rudimentarmente, a metafísica de Platão consiste em um dualismo rígido entre as ideias (ou o mundo espiritual) e suas projeções físicas (ou o mundo material), sendo a esfera imaterial, além de arquétipo do mundo físico, uma esfera pura, perfeita, etérea e incontaminável com a impureza do material. Destarte, a metafísica platônica, para os efeitos deste artigo, pode ser resumida no dualismo entre ideias e a imperfeição do que é material. A metafísica de Platão, por sua vez, foi mais elaborada anos mais tarde gerando o que chamamos de neoplatonismo. Este sistema, emprestando sem restrições a metafísica platônica, elaborou uma complexa doutrina na qual o mundo material não poderia ter sido criado diretamente pelo imaterial, pois o contato direto entre ambas as esferas implicaria na impureza da perfeição do mundo espiritual ou em sua contaminação. Assim, para sanar o problema metafísico, o neoplatonismo criou uma série de intermediários entre o espiritual perfeito e o material imperfeito.
Fatalmente, a ideia subjacente e germinal da antropologia tricotômica é, com efeito, a doutrina filosófica grega que afirma a necessidade de um "intermediário" entre o perfeito (que, no caso da antropologia tricotômica, seria o espírito) e o imperfeito (que, no caso, seria o corpo), servindo a alma como elo entre os dois elementos. Sim, a doutrina da tricotomia não vem da Bíblia, mas da filosofia pagã. Não é a toa que a maioria daqueles que defendem uma natureza tricotômica no homem também asseveram que o espírito tem de ser a parte do homem que se comunica com Deus (perceba: o espírito é o aspecto mais elevado, bem ao gosto do platonismo, e que, logo, pode se comunicar com Deus, que é o "perfeito", "espiritual" e "puro") e que o espírito é que é, na verdade, o próprio homem. Via de regra os tricotomistas afirmam que o homem sempre foi um espírito, que ganhou um corpo posteriormente. Isso é platonismo puro e, em qualquer análise crua, paganismo escancarado! A Escritura nunca apresenta o homem como sendo um espírito que ganhou um corpo tendo uma alma como intermediária, mas descortina o ser humano como um ente completo que, mesmo dicotômico, é uno, é uma unidade.
Concluindo, a doutrina da tricotomia na antropologia bíblica é completamente estranha às Escrituras e, quando adotada, traz implicações nefastas para a cristologia e, consequentemente, para a soteriologia, além de desfigurar a própria antropologia segundo a Bíblia nô-la apresenta. É claro que uma vez que se adota como pressuposto hermenêutico qualquer sistema filosófico pagão, torna-se "possível" uma leitura da Bíblia que se ajuste ao sistema previamente adotado. Isso também acontece, por exemplo, com a teologia da missão integral, que pressupõe em sua construção a filosofia marxista. Entretanto, no que se refere ao homem, a mentalidade judaica tradicional nunca reconheceu três elementos em sua constituição, mas somente dois, um material e um imaterial e, mesmo assim, ambos formando uma unidade tão hermeticamente impenetrável que se torna virtualmente impossível qualquer intento de compartimentação da natureza do homem.
Claramente, a Escritura apenas reconhece dois elementos na constituição natural do ser humano: um elemento material (o "corpo" ou outros designativos) e um elemento imaterial (a "alma" ou "espírito" ou ainda outros designativos), sendo a dicotomia, portanto, a correta doutrina antropológica a ser adotada e defendida por qualquer um que tenha a Escritura como regra de fé.
Notas
1. BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 3.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 179.
1. BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 3.ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 179.